DEIXA O MEU CABELO EM PAZ? NEGRITUDE, MASCULINIDADES E CABELOS CRESPOS - PARTE 1

       

       A primeira parte do título do presente texto foi retirado de uma canção brega que fez sucesso na voz do cantor Oswaldo Nunes e serviu de trilha sonora para casais dançarem samba-rock nos bailes blacks de São Paulo nos anos 1970. A letra da música remete ao fato de um jovem ter cabelo grande (talvez "black") e isso ser motivo de problemas, confusão e discórdia (ouça a canção AQUI). Contudo, em parte da letra se afirma de forma categórica: "não corto o meu cabelo, de jeito nenhum eu vou cortar". Fui convidado por minhas amigas do Meninas Black Power a escrever sobre a relação entre cabelos crespos e homens negros. Em meu blog pessoal, o NewYorKibe, já abordei o tema dos cabelos crespos a partir da perspectiva da classe e focada nas mulheres (ver AQUI), mas abordar a temática racial sobre o prisma da estética e masculinidade é algo novo para mim.  A discussão é complicada e longa e, assim sendo, optei por dividir a história toda em três partes/posts de maneira a não entendiar o/a leitor/a com um texto muito longo.
        Falar sobre cabelos numa perspectiva de gênero masculina é uma coisa interessante. O cativante do tema vem do fato de homens em geral tenderem não se preocupar tanto com os cabelos quanto as mulheres. Esse fato, que de antemão digo ser uma meia-verdade, tem haver com a representação do gênero masculino. A propósito, é nesse sentido que gênero deve ser entendido nessa pequeno texto, ou seja, uma representação. Explico-me. Gênero, numa perspectiva antropológica e sociológica, é uma ideia construída do ponto de vista histórico, social e simbólico sobre o que vem a ser masculino e/ou feminino dentro da sociedade não tendo necessariamente relação direta com o sexo biológico (ter nascido com um pênis ou vagina). Exemplo: uma transexual pode ser alguém do sexo masculino cuja auto-identificação de gênero é feminina. Levando em conta esse aspecto, gênero é uma categoria bastante flexível onde há performances mais masculinizadas e outras mais feminizadas. Assim sendo, agimos, nos relacionamos e construímos nossos desejos/sentimentos tendo como referências essas representações.
        A representação normativa (aquela que estabelece uma norma ou padrão a ser seguido por todos) que se construiu do gênero feminino coloca ênfase na emotividade e preocupação com aparência e, nesse aspecto, o cabelo é um elemento essencial. No caso masculino aparência é um elemento desprezado ou entendido como menor perante outros como força, virilidade e não demonstração de sentimentos. Quando a aparência é enfatizada no gênero masculino, ela sempre se encontra atrelada a outros aspectos como, por exemplo, força. Daí entende-se a fixação que certos homens tem por um corpo musculoso. Junto a não exibição de sentimentos e uso da violência esses elementos constroem a imagem do homem "durão" visto recorrentemente em papéis interpretados no cinema por artistas como Arnold Schwarzenegger, Silvester Stallone, Chuck Norris, Charles Bronson, Vin Diesel e outros remetendo a uma noção bastante valorizada de masculinidade.
      E já que citei Vin Diesel, reflitamos sobre a negritude desse autor. Segundo consta, esse é um dos assuntos que o consagrado ator de blockbusters farofas de Hollywood evita comentar embora o mesmo se auto-identifique como "uma pessoa de cor" (palavras dele). Daí vai (ou vem) a pergunta: você se lembra de ter visto alguma foto de Diesel com cabelo? Sim, existem algumas aí na web, mas ele optou de vez pelo look cabelo raspado quando sua calvície ficou mais evidente. Por outro lado, me pergunto se a preferência do ator pelo visual do cabelo raspado por navalha
talvez não remeta também a um certo incômodo com a sua negritude. Isso me lembra em muito também a relação com o cabelo que o jogador de futebol Ronaldo "Fenômeno" teve durante boa parte da sua carreira. A propósito, aqueles que tem memória boa devem se lembrar do episódio de anos atrás no qual Ronaldo, ao ser questionado sobre episódios de racismo nos estádios, se solidarizou aos seus colegas jogadores negros, mas se auto-classificou com "branco".  
       A ideia generalizada de que homens não se preocupam com seus cabelos é, como já disse, uma meia-verdade. Aparência é algo central para ambos os gêneros. Contudo, homens e mulheres negros tem motivos específicos para se preocupar com o cabelo. Entre os séculos XVIII e XIX ocorreu a estruturação do racismo científico europeu que estabelecia hierarquias entre as ditas "raças" que eram entendidas como realidades biológicas distintas e hierarquizadas: brancos europeus seriam superiores a negros, asiáticos e indígenas. A miscigenação era vista como algo negativo e a ser evitado, pois os indivíduos nascidos de relacionamentos inter-raciais incorporariam as características da raça inferior do par. Nesse contexto, determinadas traços fenotípicos como a pele escura, o nariz mais achatado, os lábios grossos e os cabelos crespos tornaram-se símbolos de inferioridade e ausência de beleza. Fácil deduzir que o padrão a que todos os outros grupos raciais deveriam se medir era o do grupo branco europeu. Isso explica em parte a relação de repulsa e incômodo que muitos negro/as tem com seus cabelos crespos, usualmente classificados como "ruins" em detrimento dos "bons" cabelos lisos. 
       No próximo post falarei de algo polêmico: alisamentos. Diferente do que muitos pensam essa não é uma prática exclusiva das mulheres negras. Nós, homens, se não o fazemos hoje, já fizemos algum dia no passado. Até lá. Muita Paz, Muito Amor!


Márcio Macedo, também conhecido como Kibe, é estudante de doutorado em sociologia e escreve no seu blog, NewYorKibe.

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12 Responses to “DEIXA O MEU CABELO EM PAZ? NEGRITUDE, MASCULINIDADES E CABELOS CRESPOS - PARTE 1”

  1. Já pesquisei sobre essa questão do Vin Diesel, há uns anos. Ele parece fazer questão de não mencionar sua origem (Só a italiana) e não se caracteriza como nada, apenas como "pessoa de cor". O que corre por aí é que sua mãe é branca, seu padrasto também, mas que ele nunca conheceu seu pai biológico (Negro). Então, acredito que ele procura se afastar disso por conflitos pessoais. Tem um vídeo dele jovem, dançando break, em que o cabelo dele (crespo) aparece e fica difícil não caracterizá-lo como negro: http://www.youtube.com/watch?v=JD2Mb8pM6E8. Juntando ao fato que ele está dançando break "profissionalmente", parece que ele se identificava culturalmente, mas não dá pra saber. O fato é que ele se vende como um artista "mixed-breed" e os produtores gostam disso, visto que em vários filmes dele não existem comentários sobre sua etnia ou ascendência. E justamente nos EUA, onde todo filme tem menções a essas coisas.

    PORÉM, ele interpreta ítalo-americanos brancos (?) em dois filmes que lembro: O Resgate do Soldado Ryan e Find Me Guilty. No último ele aparece de cabelo ALISADO. O estranho é que ele não parece branco, os norte-americanos certamente não o enxergam como branco e mesmo assim ele faz esses papéis. Em Velozes e Furiosos ele é de origem cubana, sua irmã e sua esposa interpretam a "latina genérica" de origem indígena americana. Mas, pelo que eu me lembre e conheço, não existe NENHUM filme em que ele interpreta alguém de origem africana.

    Dwayne Johnson, o The Rock, é outro que vive interpretando personagens "não-raciais". Mas já vi ele interpretando um personagem obviamente negro num filme, em que ele usava até uma peruquinha black power (Seu cabelo parece ser liso-cacheado).

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  2. O cabelo visto como elemento essencial na representação normativa do ponto de vista estético deveria de certo modo, fortalecer a compreensão dos valores étnicos/raciais para uma construção e fortalecimento da identidade, no entanto,como o padrão ainda é "eurocentrista", e nesse caso pensando nas mulheres negras que quase sempre são desejadas de maneira que o exótico se faz presente na contradição dos padrões estéticos: em forma de tráfico de mulheres, assédios, violências, estupros, abortos clandestinos,prostituição, etc.

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  3. Gente, que banca isso. Sou formada em Ciências Sociais e estou desenvolvendo pesquisa na área de antropologia também nesse tema. E um dos pontos do projeto são os homens/masculinidades nesse universo de cabelo, alisamentos e afins. Parabéns pela qualidade dos textos e os pontos que estão sendo levantados.

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    1. Larisse, que ótimo!
      Ficamos felizes que este assunto está sendo discutido/estudado.
      Beijos crespos!

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  4. Meninas, mais uma vez tenho que parabenizar vocês.
    Acho construtivo a fala de um homem preto consciente, é sempre bom somar diferentes pontos de vista acredito ser fundamental ter homens e mulheres pretos juntos.

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  5. Eu sou negro e minha cor é extremamente escura. Tenho orgulho das minhas raízes, no entanto, meu cabelo não é crespo, é no maximo cacheado e sempre invejei quem tinha um cabelo afro. Me incomoda ter que mante-lo raspado. Meus pais são negros, mas pelo que sei, meu bisavo materno era indio, ele se casou com minha bisavo negra (que era filha ou neta de escravos). Acho que meu cabelo vem dos indios então.

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    1. Joaquim, talvez essa discussão esteja realmente para além da textura. Questionamos aqui o padrão. Nem você com seus cachos, nem homens com cabelos extremamente crespos deveriam ser obrigados ao corte.

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  6. Muito boa sua ideia do post....parabens pelo blog!!

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  7. Adorei! Espero ansioso pelas próximas partes.

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    1. Olá! A segunda parte está aqui: http://meninasblackpower.blogspot.com.br/2014/01/deixa-o-meu-cabelo-em-paz-negritude.html. Obrigada pelo comentário.

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