ÓRFÃS CAPILARES


       De repente... órfã! Como toda menina, crespa ou não, minha mãe sempre cuidou do meu cabelo. Primeiro eram as tranças e penteados, os cortes, os arcos. Até que chegaram as químicas, escovas, tinturas, luzes e enfim a queda.
      Meu cabelo sempre foi muito resistente à química, mas nem tanto ao meu sistema nervoso. Na época que estava prestando vestibular, aos 15 pra 16, meu cabelo começou a cair demasiadamente. Eu não sabia o que fazer, pois estava sem tempo pra cuidar e tal, aí acabei implantando cabelo, lógico, levada pela minha mãe, que já usava implante tinha uns anos.
       Usei mega hair por sete anos, e minha mãe sempre decidia ou ajudava a decidir sobre o corte, o tipo, a cor, sempre ia comigo pra fazer o cabelo, escolhia a cabeleireira e tudo. Acontece que tudo isso foi me cansando, porque não achava mais graça de fazer o cabelo, gastar fortunas e ter que cortar o meu pra ficar com um bom acabamento. Decidi que iria largar o vício e cuidar do meu próprio cabelo, mas acho que minha mãe não acreditou nessa decisão.
       No dia que eu tirei o cabelo implantado e cortei as pontas alisadas do meu cabelo, minha mãe chorou. Chorou, não queria me ver, não queria olhar pra mim, disse que eu estava horrível, que tinha me convertido a uma seita. Perguntou porque eu estava me destruindo desse jeito, se eu estava deprimida, se eu estava desgostosa da vida.
       Eu estava firme com a minha decisão, mesmo vendo que meu cabelo não estava tão maravilhoso como as meninas das revistas. Eu não sabia cuidar, não sabia o que fazer e não tinha minha mãe pra me ajudar. Tive que ser teimosa (não é sacrifício) e ir atrás de dicas, de produtos, de maneiras de pentear... Fui atrás de uma mãe adotiva e encontrei várias, mas mesmo assim ainda faltava algo.
       As pessoas do convívio viviam elogiando meu cabelo, dizendo que estava lindo, que eu estava mais feliz, mas minha mãe ainda tinha vergonha de mim quando íamos fazer unha, por exemplo. Dizia que as cabeleiras ficavam me olhando e por isso ela sempre falava: "Minha filha cortou o cabelo agora, é uma fase." Eu sempre tinha que dizer que não era uma fase, que aquele era meu cabelo e seria assim eternamente e ouvia nesses lugares vários elogios, contrariando ao que minha mãe pensava.
        Minha mãe achava que eu sofreria preconceito na rua, que as pessoas me olhariam com desprezo, que perderia credibilidade na profissão, que mostraria uma imagem desleixada pra sociedade. Um mundo de conceitos tortos que foram jogados pra ela desde a infância e que não estão tão fora de contexto, considerando que a sociedade é preconceituosa e tudo isso poderia acontecer.
          Com o tempo e o crescimento do meu cabelo, minha mãe foi aceitando mais a nova situação. Eu nunca tinha feito nada na cabeça que não tivesse a aprovação dela. Até agora. Foi um corte não só de cabelo, mas também de um laço de dependência que nos unia (um dos últimos).
          Hoje ainda é difícil fazer com que ela entenda que estamos resistindo a uma imposição e que mesmo não sendo fácil, ainda conseguimos andar de cabeça erguida por aí. Porém ela já consegue esboçar uns elogios, diz que meu cabelo está bonito, que está crescendo muito rápido e tal, começou a comprar produtos, a fazer "preparado" com vitaminas , óleos e cremes. "Já que você entrou nessa onda, seu cabelo vai ser o mais bonito"! Foi com essa frase que ela me deu o primeiro tônico pra cabelo crespo que comprou na vida. Confesso que fiquei meio resistente à participação dela no meu black. Sentia que era algo meu, não queria que ela se envolvesse, mas na verdade tinha medo de ouvir mais críticas. Acabei por permitir que ela participasse, ela não se fez de rogada e veio com tudo.
        Entendi que maternidade é um mistério muito profundo. É amar quem faz exatamente o contrário do que você quer ou acha melhor. Com certeza, não é tarefa fácil, principalmente a quem lhe obedecia em tudo até poucos anos atrás. Quem você deu banho, alimentou, ensinou a andar, discordando de você? Deve ser louco! É o que elas querem... Que os filhos sejam independentes, seres pensantes com opinião, mas se concordarem com elas é melhor.
       Esse episódio me fez constatar que o que me une a ela não são as coisas que fazemos juntas, ou as coisas que concordamos. Eu posso discordar dela, e ela de mim, e ainda seremos mãe e filha, ainda estaremos juntas. Minha mãe me provou que ela vai me apoiar independente do que eu fizer. Ela vai dizer que não concorda, vai me fazer mudar de ideia, vai tentar me proteger de perigos que só ela vê, mas vai me ajudar, mesmo não concordando. Nossa relação chegou a um nível mais maduro, de mais amizade e menos dependência. Onde eu sei que ela vai me apoiar, e ela sabe que eu sou adulta o suficiente pra bancar minhas decisões, mesmo se ela não apoiar.
       Eu sei que a minha história não é a única. Muitas meninas perdem o apoio das suas mães quando passam pela transição. Uma dica: Resistam, mas não percam a ternura. Mães são artigos raros, que nem sempre estão certas, nem sempre têm razão, mas que amam seus filhos mais que qualquer coisa. Não nos esqueçamos disso! Até!



This entry was posted on 15/05/2013 and is filed under ,,,. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.

11 Responses to “ÓRFÃS CAPILARES”

  1. Nossa Helena que lindo!
    Minha mãe sempre me apoio, e me incentivou a usar meu cabelo. Procuramos cabeleireiros, cremes, acessórios, quase tudo que podia fazer, ela fez. Mas só consegui para com química, quando acreditei que existia outra forma e busquei na internet.
    Os cabelos de minha mãe são bem mais maleáveis que os meus, por isso era dificil para lidarmos, mas hoje eu sei, e ela curti bastante. Pena que levou tanto tempo para eu entender..
    Parabéns pela homengem (ligeiramente atrasada as mamães).

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    1. Que bom! É sempre bom fazer algo com as nossas mamães né? Aproveite bem isso! E quanto à química, existe vida sim e é maravilhosa não é?
      Beijos!

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  2. Adorei o texto!!!!!!!!!! Fiz minha mãe ler o texto! Nem sou uma órfã capilar, mas por aqui a luta é fazer ver que ter um Black não é só questão de estilo, mas um resgate de si.

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    1. Jaci, coisa linda!
      É muito complicado ainda conversar com a geração anterior sobre essa questão capilar. Sinto que elas foram bem marcadas pelo preconceito e tiveram pouca voz. Vamos falar por elas, mesmo que elas não nos entendam!
      Beijos !

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  3. Lindo texto. E dá pra perceber facilmente que para a sua mãe o seu cabelo pertencia a ela e não poder mais tomar decisões sobre o cabelo que sempre foi dela deve ter sido um processo doloroso e entender que você já tinha condições de decidir sozinha...

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    1. Sim, era isso mesmo! Pra minha mãe é muito difícil ver que eu sou adulta. Foi um processo complicado, e até hoje ainda é um assunto delicado. Mas já está bem melhor! Que bom que leu e gostou do texto!
      Beijos crespos!

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  4. HB, sua linda!!
    Escreve muito....
    Identificação : ".....mas se concordarem com elas é melhor" "... vai tentar me proteger de perigos que só ela vê" HAHAH
    Li o texto pra minha mãe e aproveitei para dar uma "catucada" nela de leve, mencionando o assunto "tatuagens" rs
    Beijo

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  5. Tô no início da minha transição. Fui procurar inspiração na internet e me deparei com esse texto maravilhoso!
    Estou há 3 meses sem química no cabelo e a parte mais difícil pra mim está sendo a falta de apoio por parte da minha mãe, que até já marcou salão na tentativa de me fazer voltar alisar. Estou resistindo e gostaria muito que ela entendesse que estou fazendo por uma questão de aceitação e identidade. Sou negra, crespa e quero mostrar isso pro mundo!

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    1. Muito obrigada pela contribuição! E permaneça firme, estamos juntas!

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