Na primeira cena antológica, Isabel (Camila Pitanga) amparada por Afonso
(Milton Gonçalves) conta a Elias (Cauê Campos) que a moça dos doces, sua avó,
Constância (Patrícia Pillar) é a bruxa da história. Quando indagada por Elias
sobre por que Constância não gostava dela, Isabel diz que era pobre. Elias, o
menino esperto, tem resposta para tudo e diz que não são mais pobres e que
Constância pode ter mudado, ter-se arrependido, faz tanto tempo que ela o
roubou da mãe. O diálogo é mais rico e dramático do que esta síntese. A memória
recente apagou detalhes, haja vista que a analista foi para o espaço e me
tornei simples telespectadora, sem caneta e caderno à mão.
A cena descrita foi muito feliz ao captar a ignomínia do racismo, já anunciada
por Isabel em capítulos anteriores. Como é que a mãe explica a uma criança que
ela vale menos porque é negra, contrariando todo o empenho dela, a mãe, para
tratá-lo como menino especial. Se bem observarmos, Elias e Melissa (Eliz David)
vestem-se de maneira diferente de todas as outras crianças do morro, comem
outra comida em suas respectivas casas, têm outros hábitos e acessos. Melissa é
branca e rica, Elias é como as crianças do morro, mesmo tendo se tornado de classe
média.
O novo é a explicitação de que não interessa ter recursos econômicos e
simbólicos frente ao racismo, você continua sendo negro e por isso, considerado
inferior, manipulável. Elias é aquele que deveria crescer escondido para não
envergonhar a família branca da avó. Aquele que não foi assassinado na hora do
parto porque num rudimento de humanidade, a vilã resolve trocar a criança viva
por outra morta, comprada de uma mãe infeliz e miserável qualquer. Isabel,
Afonso, tia Jurema (Zezeh Barbosa), Zé Maria (Lázaro Ramos) e o restante do
núcleo negro, incluindo as comparsas de Constância, parecem ser os únicos a
compreender a monstruosidade da baronesa em toda sua extensão. Ela pagou alguém
para comprar uma criança morta, usada para substituir outra, nascida viva, caso
alguém tenha esquecido.
A segunda cena abre com Isabel dizendo ao pai: “negro, porque você é negro! Eu
não consegui dizer ao meu filho que a avó o roubou de mim porque ele é negro.”
É um diálogo de dois negros em carne-viva, dilacerados pelo racismo o que se
ouve a seguir, às sete da noite, como uma lua linda dando o ar da graça pela
janela. De quebra, o pai conservador parece compreender que o ofício da filha,
de empresária e dona de um teatro, cujas atividades acontecem também à noite, é
um trabalho digno.
Noutra cena do capítulo magistral, Laura (Marjorie Estiano) aceita a proposta
de Edgar (Thiago Fragoso) de que ela seja a testemunha responsável por reabrir
o processo de rapto de Elias, considerando que ela, mulher branca, filha da
vilã, ouviu a megera confessar a Isabel e Afonso (dois negros que nada valem e
diretamente interessados no litígio) que, realmente, raptara o recém-nascido
Elias. Bingo! O mocinho advogado e a mocinha filha da vilã entenderam o papel
estratégico que tinham a desempenhar naquela situação. Edgar honra alcunha de
ser um dos melhores advogados do Rio de Janeiro de então e Laura agirá de
acordo com sua consciência ética e sua noção imparcial de justiça.
Na última cena do dia memorável, Laura trava luta corporal com a mãe para
entregar uma matéria sobre corrupção no Judiciário para o jornal de Guerra
(Emílio de Mello). Reportagem assinada por ela, Laura Vieira, não por Paulo
Lima, seu fantasma e, ainda melhor, incriminando o promotor Coimbra,
responsável pelo arquivamento do processo de Constância, mediante polpudo
suborno.
Arre Frederico, foi um capítulo de tirar o fôlego. Que os orixás mantenham Ali
Kamel em estado hibernal. Caso esteja acordado, pode apenas ser uma no cravo,
outra na ferradura. Lógica global, enquanto pipoca a chamada para a próxima
novela.
Que Lado a lado crie raízes fortes, floresça e frutifique, pelo menos entre
seus seguidores e seguidoras que a tem levado para o debate sobre relações
raciais nas escolas públicas, em universidades, em trabalhos de conclusão de
curso, artigos, monografias e dissertações sobre mídia e representação social.
Texto de Cidinha Silva