É A MINHA CARA - CHARLENE BICALHO


  Marcamos de conversar pelo Skype e assim que a janela abriu vi logo aquele cabelão todo, lindo e vivo. Sorriso cativamente, voz simpática e coesão nas ideias só acompanham a coroa florida que ela carrega sobre os pensamentos férteis. Creio que o cabelo dessa guerreira seja o reflexo deles, florindo o rosto, o país, outras cabeças... O papo não foi rápido, viu? Quase uma aula, sendo mais sincera. Como não conversar com alguém que pensa que precisamos de autenticidade pra viver e não querer absorver cada palavra? Charlene surgiu, emergiu e transformou, com a ajuda de quem apoia o trabalho, os cérebros de muitos. Transformar o cabelo é só a consequência. Desde quando os ramos nascem antes da raiz? Abaixo a história toda e muita inspiração pra quem quiser.

MBP: Como surgiu a ideia do projeto Raiz Forte?
CB: A ideia surgiu após 29 anos de pesquisa com minhas vivências com os cabelos crespos. Na infância andava sempre com as tranças que minha mãe fazia com carinho, mas eu detestava. Quando entrei para escolinha os puxões para trançar e destrançar os cabelos intensificaram, porque eu não podia nem pensar em pegar piolho. Na adolescência tanto eu como minha mãe vimos o alisamento como a salvação do meu problema, com os cabelo liso poderia usá-lo solto, ficaria livre das tranças, poderia até ter franjinha como a maioria das minhas amigas. Mero engano... Me tornei escrava dos "tratamentos" químicos, dos rolinhos, das tocas, dos secadores e depois das escovinhas. Utilizava um tipo de produto duas vezes e o cabelo logo começava a quebrar ou cair mesmo. Troquei diversas vezes de produtos químicos e salões de beleza, gastava uma fortuna para alisar e depois uma fortuna para hidratar e recuperar os fios danificados pela própria química. Nunca estava satisfeita com o resultado dos alisamentos, pois não ficava como os cabelos da maioria das minhas amigas, liso. 
     Aos 26 anos de idade fui surpreendida pelo seguinte questionamento do meu namorado na época: "como é seu cabelo?". Não me recordo muito bem o que respondi, mas foi algo do tipo "eu sei como ele é e aliso porque gosto". Quando cheguei em casa fiquei me olhando no espelho tentando me lembrar como era meu cabelo, comecei a procurar fotos da infância quando ainda não alisava o cabelo e ainda não conseguia visualizar aquele cabelo. Comecei então a perguntar para as cabelereiras dos salões que eu frequentava como eu poderia fazer para deixar o cabelo natural. Todas me respondiam que isso não ia dar certo porque meu cabelo tinha várias texturas, não iria encaracolava, era muito seco, e por ai vai... Não satisfeita com as respostas (na minha opinião, sem fundamento) decidi então usar tranças soltas com jumbo. Essa foi a forma que encontrei de esconder os fios alisados enquanto a raiz crescia. Fiquei um ano nesse processo até ter cerca de cinco dedos de cabelo virgem. Então procurei um salão especializado em cabelos afro, contei minha estória e pedi para cortar. Nem dormi aquele dia! Tinha chegado a hora de descobrir como era meu cabelo. Depois que a cabelereira molhou meu cabelo após o corte me vi com o cabelo bem curto e todo cacheadinho.  Nos primeiros dias achei muito estranho, não me achava bonita, mas com o passar do tempo o cabelo cresceu e ficou cada vez mais bonito. Entretanto, caí na besteira de usar química novamente com o propósito de alongar os cachos e meu cabelo quebrou todo. Esse episódio me marcou muito porque tive que cortar o cabelo bem curtinho e deixar ele crescer novamente, o que demorou cerca de seis meses, período em que me senti sem forças, me culpando por me auto sabotar.
    Cerca de um ano após esse corte tipo Joãozinho, comecei a ser abordada por mulheres negras, em ambientes que eu frequentava, perguntando o que eu fazia para meu cabelo ficar daquela forma. As abordagens aumentavam a medida que o meu cabelo crescia e isso começou a mexer comigo porque eu me via naquelas mulheres, via nelas meu cabelo de anos atrás.  Comecei então a pensar algum projeto cultural onde pudesse abordar essa temática, no intuito de mostrar para essas mulheres que existem alternativas para tratar dos cabelos diferentes das que geralmente são ensinadas no âmbito familiar. Dessas reflexões surgiu o projeto RAIZ FORTE!

MBP: Como é a seleção das meninas que participam?
CB: As entrevistadas são selecionadas a partir de suas histórias de vida. Após indicações de amigos, pesquisas via internet ou a partir de estórias já conhecidas faço o contato via Facebook ou telefone e marco as entrevistas.

MBP: Quais as experiências mais marcantes dentro do projeto?
CB: Os lugares para onde as entrevistadas me levam são muito marcantes. É como se tudo o que já vivi estivesse guardado em um quarto escuro e cada uma dessas mulheres que entrevisto ilumina com uma mini lanterna cenas do vivido a partir de suas estórias de vida. A última entrevistada me comoveu contando que as festas de fim de ano já tinham lhe gerado muito sofrimento porque ela não se sentia bonita, por vezes não queria ir às festas... Sua fala me levou imediatamente as festas de Natal da minha família onde por mais que estivesse com o cabelo escovado, roupa nova, não me sentia bonita, faltava alguma coisa.

MBP: Como tem sido o financiamento do projeto?
CB: Raiz Forte é um projeto incentivado pelo Programa Rede Cultura Jovem. Fruto de uma colaboração entre a pesquisadora e fotógrafa Charlene Bicalho, o artista multimídia Msensorial, o diretor de arte Pedro Ribeiro e em parceria com o coletivo Compatilhe Ou Nada! E Blog Garganta.

MBP: Quais são os projetos futuros?
CB: Buscar meios, parcerias e formas de distribuições para o web documentário Raiz Forte, no intuito de colocar o tema em discussão em pontos de cultura e escolas do Brasil ou até mesmo de outros países.

MBP: Quem é você?
CB: A mais difícil fica por último ne? [risos] Bem, sou fruto de um amor "café com leite"... Fui criada no seio das Minas e das Gerais em uma cidade do interior chamada Nova Era, onde morei até os vinte anos de idade, quando me mudei para Coronel Fabriciano/MG em busca de novos rumos. Não satisfeita com os caminhos até então percorridos joguei o tudo recheado de nada para o alto, em busca de novas identidades no Espírito Santo.  Hoje moro em Regência Augusta/ES, onde atuo como pesquisadora, fotógrafa, agente cultural e o que mais me desafia pela frente. Acho que sou uma mulher movida por tudo aquilo que a princípio parece ser uma loucura. 


This entry was posted on 10/10/2012 and is filed under ,,,,,,,,,. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.

2 Responses to “É A MINHA CARA - CHARLENE BICALHO”

  1. Adorei, me emocionei e me inspirei com esse post! Você é uma guerreira que nos motiva a continuar e têm ajudado a mais mulheres e homens como nós estamos tentando fazer! Meus parabéns pelo projeto, conte com minha divulgação, da qual já estou executando!

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  2. nossa, que história maravilhosa e ao mesmo tempo tão igual a de todas nós mulheres negras. força para charlene bicalho.

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