por Lais Reverte
Foto: Acervo pessoal |
Há um tempo, vi
uma entrevista onde um casal falava de como iniciou-se a relação. Ela dizia: "uma noite estava em casa conversando no celular com ele e contei que
estava lendo um livro, assim que eu desliguei, ele procurou o livro na internet
pra ler durante a madrugada e poder conversar comigo no outro dia sobre". Ele então olhou pra ela e disse: "sim, eu fiz isso, tinha que ter um
argumento para falar com ela no outro dia, né?". Ela conclui: "foi aí
que ele me conquistou".
Conquista - con.quis.ta (sub.fem.): ação de lutar para se obter o que se
quer; o que se obtém através de esforço ou trabalho.¹ Inicio aqui esse
texto, após essas duas referências basais, para chegar onde desejo. Venho há
meses pensando em como formular tudo o que preciso dizer, sem parecer vitimista
e nem universal. Então entendam esse texto como um testemunho, um desabafo. Já
me convenci de que o romance romântico, novelístico, comercial, não é feito para a
realidade. É cansativo ver o tanto de mana preta, branca, binária ou não, cis
ou trans, tendo a mesma reclamação da inexistência dos "príncipes em
cavalo branco". Deixo isso exposto para não entenderem que o que venho falar não tem relação apenas com o
amor romântico.
Indo de encontro
as minhas experiências, inclusive das mais recentes, chego a fatídica verdade
que não para de martelar a minha mente: meu corpo preto não foi feito para ser
romantizado, muito menos amado. Cresci vendo que
a opção primária, sem subjugação, sem escolhas de outrem, não são minha realidade.
Qualquer, digo QUALQUER, decisão que por mim venha a ser tomada sempre passa
por uma série de aprovações e desaprovações prévias, inclusive a possibilidade
de escolher, tanto que isso já está intrínseco na minha personalidade. Não sei
seguir em qualquer caminho da minha vida sem uma aprovação prévia, ou uma ordem
superior de que devo escolher ou não. Partindo para o lado das relações
interpessoais, quaisquer que seja, não sou nunca a primeira a decidir o que
seguirá, nem a que porta o poder de decisão, no máximo a que apresenta as
opções ou a que escolhe entre sofrer ou seguir em frente, afinal querer ficar
nunca me é um escolha, sempre escolhem ficar ou não.
Já tendo a
realidade de um indivíduo secundário que sou, seguro a marimba de nunca
acreditar em qualquer manifestação de afeto que, supostamente, é dirigido a
mim. Digo "supostamente" por nunca acreditar que esse afeto é real. Fui
treinada para pensar que não sou digna dele. Me dizem se me querem ou me dizem
se me deixam, não me dão a vivência de me sentir feliz e bem e de estar fazendo
o outro feliz e bem (se estou feliz, estou só), logo, não acredito em afeto
algum por mim. E isso não é uma verdade formada por teorias, mas sim em
vivência. Me recordo de que em todos supostos namoros que tive, e até mesmo no
único namoro propriamente dito que vivi, o esforço e extrema negação de mim pra
poder viver tal experiência (que hoje vejo de forma extremamente positiva, por
ter me feito crescer e conhecer a pessoa maravilhosa com quem convivi) me
fizeram crer, recentemente, que nunca escolhi nada, apenas nego a mim e minhas
vontades e faço o que julgo ter de ser feito.
Foto: Acervo pessoal |
Daí me ponho de
frente às minhas posturas atuais no processo de conhecer o outro. Me recordo
que todo primeiro contato é feito a partir de um elogio (ou não) sobre meu
corpo preto. Falam do meu cabelo, do quanto acham ele estiloso, lindo e
diferente. Falam da minha pele, do quanto gostam dela, como é lisa e queriam
tê-la pra si naquele momento ou ter nascido com ela. Falam dos meus seios ou bunda,
do quanto são fartos e o quanto eu devo ser feliz e boa de cama por eles serem
assim. E aí, acostumada com qualquer associação da minha personalidade à minha
imagem, que vem sendo ratificada como pessoa que dá prazer em qualquer canal de
TV (tipo Globeleza e afins), qualquer filme ou cena de novela, não tenho a noção do
que é ser reconhecida como PESSOA sem antes ser reconhecida pelo meu corpo
preto, única parte em mim que parece ser digna de qualquer coisa. Portanto o
uso como cartão de visita, e entendam, essa não é uma escolha minha. Usá-lo
dessa forma não é algo que eu goste, e isso é determinante para a formação do
que enfim irei dizer.
Meu
corpo preto não foi feito para ser romantizado, muito menos amado. Sou só
mais um corpo preto que resiste pra existir, usado principalmente na noite, nos
cantos, esquinas, quartos escuros de um motel barato, porque era o que o
dinheiro dava ou a minha dignidade pedia. Sou só um corpo que não tem alma,
não tem a opção de ser querida ou entendida, e se alguma migalha me é dada, me
agarro como se fosse a minha única e última forma de respiração e esperança de
ser reconhecida apenas como mulher que também necessita amar e ser amada e bem
quista. Não tenho a opção de precisar ser cuidada, de ser frágil e insegura porque
tenho um corpo que conhecidamente é mais forte, mais rígido, mais agressivo (de
onde saiu isso tudo de mim que sempre dizem que tenho?) e por isso aguento,
aguento sempre. Sou um corpo que, quando é a amiga, é a mais escandalosa do
rolê e que é chamada pras experiências mais loucas, afinal, eu com certeza devo
aceitar de tudo, né? Sou um corpo que, numa amizade, é quem espera, quem não
recebe o convite pra sair, quem sempre precisa correr atrás pra que algo
aconteça. Sou um corpo que é chamado no
fim da noite pra uma trepada e nada mais. O suposto empoderamento me faz
acreditar que tenho poder de escolha, que tenho a opção de querer ir ou não e
estou acima de qualquer coisa por ter sido a escolhida, mas na realidade estou
só no fim da lista de possibilidades pra uma foda qualquer (que, diga-se de
passagem, deve ser bem rápida e o mais discreta possível). Sou um corpo preto digno de
ser cortejado no inbox, privado da vida, por aqueles que já tem sua cota
romântica gasta com as parceiras-padrão e essa "neguinha" que vos fala só é
tratada como gostosa e "nossa que tesão tenho por você". Sou MAIS UM
corpo preto que não sabe o que é romance e precisa lutar pra viver e aprender a
amar, visto que essa palavra pra mim só é um verbo sem qualquer sentido de
ação.
Sabe aquela historinha
real que contei no início? Ela nunca vai acontecer comigo, e isso não é culpa
minha (pelo o menos me esforço para acreditar que não).
¹ Dicionário da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2016
Não é culpa nossa.
ResponderExcluirTão real e próximo que chega cortar!
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