Foto: acervo pessoal |
Falar
da Vanessa Andrade sem uma imensidão de elogios foi bem difícil, ela é sim uma
mulher especial. Coordena de forma magistral o projeto Afrobetizar (<3) que tem
como propósito legitimar o corpo como território de afirmação da negritude. "O
Afrobetizar foi virando uma proposta com a intenção de proporcionar
experiências onde se perceber negro passasse a ser associado à alegria, algo
muito bom! Era preciso alfabetizar a criançada na negritude para que elas pudessem
falar sobre suas vidas enquanto crianças negras com menos agressividade e mais
carinho". Palavras da própria Vanessa.
MBP - Quem é você?
Vanessa
Andrade - Sou Vanessa Menezes de Andrade, filha de D. Edna e do Sr. Jadir. Sou
negra, moro desde que nasci na favela do Cantagalo, tenho 30 anos de vida e 1
ano de confirmada ekedi de Oxossi, sou filha Oxum e de Iyá Meninazinha de Oxum.
Sou doutoranda de psicologia social. Há dois anos, comecei a estudar a
psicologia que mais me interessa: Psicologia Afrocêntrica. Acredito e pratico
uma educação com as crianças negras pautada na afirmação da negritude e na
construção de uma relação de união e solidariedade que segue o que o grande
professor Abdias do Nascimento chamou de Quilombismo. Por isso, desde 2012,
desenvolvo junto com amigos-malungos um projeto sem fins lucrativos na favela
onde vivo, chamado Afrobetizar.
Neste último ano tenho entendido mais o caminho que trilhei e as responsabilidades que assumo enquanto preta, compreendido a importância de nutrirmos os vínculos de amor entre nós. O amor me rege! Como disse, sou de Oxum.
Neste último ano tenho entendido mais o caminho que trilhei e as responsabilidades que assumo enquanto preta, compreendido a importância de nutrirmos os vínculos de amor entre nós. O amor me rege! Como disse, sou de Oxum.
MBP - Como se deu a descoberta da sua negritude?
VA - A politização da afirmação da minha negritude teve forte influência das
letras do Racionais Mc’s e da prática da capoeira angola. Neste processo
destaco a força e presença do meu mestre de capoeira, Claudio Nascimento. O meu
“tornar-se negra” começou na escola... Sou negra pouco pigmentada e na favela
onde vivo a maioria não me vê como negra. Aqui o discurso da pigmentocracia
opera! Só que estudei a vida toda em colégios particulares e lá, entre os
brancos, não havia dúvida de que eu não era branca. Fui aprendendo que meu cabelo
dito “bom” na favela era “ruim” na escola e que minha pele “clara” na favela
era “escura” no colégio e por aí vai… Mais tarde quando prestei vestibular já
me assumia negra, concorri por cotas na UERJ e passei com uma das maiores notas
do vestibular daquele ano de psicologia. Fazia questão de afirmar isso em sala
porque éramos humilhados por professores e alunos que diziam que o nível da
universidade ia cair e coisas do tipo. Lá na UERJ conheci o pessoal do
DENEGRIR. De cara gostei do Hugo, mas achava as ideias deles radicais. Devagar
fui frequentando alguns encontros e reconhecendo a importância daquele grupo e
daquele espaço. Este encontro foi importante para começar a “pensar” o que era
ser preto academicamente/politicamente. Eles me apresentaram a obra de autores
pretos e isso foi fundamental porque a formação que recebi na universidade é
totalmente eurocêntrica. É preciso falar do desconforto que é ser vista pelos
pretos como alguém que tem “privilégio” por ser menos pigmentada. Se por um
lado tive a possibilidade de acessar certos espaços com mais facilidade, por
outro vivi uma ilusão de que era branca e quando a verdade veio à tona, foi
sofrido, tardio e solitário. Portanto, não nego que haja facilidades, mas acho
muito fragmentador e perigoso este discurso de “privilégio”. É comum no
Afrobetizar chegarem crianças pouco pigmentadas dizendo que não são negras e
quando me afirmo negra, elas passam a pensar e considerar a própria negritude.
Por outro lado, já ouvi crianças muito pigmentadas dizerem: “Se você é preta e
eu também, quero ser preta como você!”. Ali eu vi o limite do meu corpo preto.
Não podia mais ser eu fortalecendo a negritude daquela criança. Nessas horas
precisamos mais do que nunca ser aldeia e contar com a participação de outras
pretas e pretos com diferentes tons e traços para afirmar o fundamental: somos pretos
vivendo em um sistema racista. Precisamos nos unir.
MBP - O que te levou a escolher a sua profissão e como foi o
caminho da sua graduação?
VA
- Escolhi Psicologia porque não passei em Medicina. Nunca tinha ido ao psicólogo.
Não conhecia nada de Psicologia e honestamente estou no doutorado e nunca li
muitos autores mais celebrados. Fui sorrateiramente me esquivando, me
permitindo ter contato com uma forma de pensar psicologia que me fez acreditar
que seria importante persistir apesar de todos as frustrações. Fui constatando
o triste e lamentável: o fato dos hospitais psiquiátricos historicamente estarem
lotados de população preta, assim como as prisões, os moradores em situação de
rua, os usuários de drogas sem assistência, as favelas, os jovens mortos pela polícia,
os policiais mortos e por aí vai… A Psicologia não falava nada sobre isso. Quis
continuar para poder pesquisar e falar sobre nós e assim aprender outro modo de
ser psicóloga.
MBP - Quem são as pretas
e pretos que te inspiram?
VA - Honestamente,
acho difícil nomear porque são muitas e muitos... As mulheres e homens da minha
família, principalmente, minha mãe e meu pai. As crianças no Afrobetizar; minha
mãe de santo, Mãe Meninazinha de Oxum e todas as minhas irmãs de axé; Vanda
Ferreira que é uma das maiores ativistas negras que conheço! Minhas amigas:
Ludmilla, Dani, Fafá, Kati, Nina e Samara. E tem as autoras… Iyanla Vanzant e
Conceição Evaristo; o meu mestre Claudio Chaminé e o professor Abdias do
Nascimento.
MBP - Quem é aquela
mulher preta que você conhece e quer que o mundo conheça também?
VA - Vanda Ferreira. Nós precisamos escrever livro e
filme sobre a militância dela. Dia desses ela me contou como colaborou para criação
do movimento negro dentro do antigo Complexo Penitenciário Frei Caneca. Ela me
mostrou algumas das cartas que recebeu de presos agradecendo a forma como ela
acreditava neles e falava para eles do poder preto. Coisa linda!
MBP - Na sua
trajetória profissional, o quanto avançamos e o que ainda temos que avançar?
VA - A Psicologia no Brasil é um saber a serviço da elite
branca que tem como pagar atendimento clínico e que se vê reconhecida no referencial
germano-francês que fundamenta o pensamento psicológico brasileiro. Embora haja
profissionais comprometidos com uma prática mais ética, precisamos mudar a
nossa formação. Inserir as discussões raciais nas disciplinas e realizar
pesquisas sobre os impactos do racismo e dos privilégios da branquitude na
subjetividade da população, aí falo de negros e brancos, pois é preciso estudar
o branco. É preciso mais pretos nas pós-graduações (é lá que o racismo
seleciona e impede o acesso do nosso povo ), que façam pesquisas com temáticas
relevantes para o nosso povo, usando como referenciais teorias e autores negros;
falta uma problematização do tipo de atendimento realizado nos centros de atenção
psicossocial e que muitas vezes acaba sendo o único espaço de acolhida da população
preta; falta aos conselhos da profissão ações mais direcionadas de promoção da
saúde mental da população negra. Reconheço um avanço que é a criação de grupos
de relações raciais em alguns conselhos, como o do Rio de Janeiro, que promovem
seminários onde a questão racial é abordada. Para os psicólogos pretos falta se
aproximarem de outros referenciais teóricos. Eu venho estudando psicologia
afrocentrada e psicologia negra em um grupo de estudos com duas estagiárias de
psicologia do Afrobetizar e estes conhecimentos têm sido fundamentais para
embasar outro modo de ser psicóloga e direcionar e qualificar nosso
atendimento.
MBP - Como você lida
com a sua estética negra?
VA - Uso óleos naturais diversos no corpo e cabelo. Uso
produtos que não tenham química nociva (minha visão de nociva é tudo que
modifica a estrutura do meu cabelo). Parei de usar esmalte porque comecei a
achar feio. Não sou favorável aos discursos que alguns grupos e militantes
defendem de antidepilação, antiquímica, antiaplique, antialisamento etc. Já
temos um mundo contra nós, defendo que a/o preta/o saiba sua/nossa história e
faça a partir daí sua escolha sabendo que o racismo impõe a beleza nórdica e que
algumas práticas que pensamos ser manifestação da nossa vontade são na verdade uma
submissão ao padrão branco. Maaaaaas se a preta ou o preto sabendo de todo este
processo e ainda assim quiser alisar ou usar aplique é direito dela/e! Menos
julgamento e performance, pois estou vendo um monte de pretas/os com black
laranja, azul, rosa e quando falam não ouço um discurso coerente. Não estou
preocupada com esta aparência, quero e luto por mais discurso e práticas
efetivas de fortalecimento nosso. Já no meu caso, que lido com crianças e
adolescentes em processo de afirmação da sua negritude, é extremamente
importante assumir os cabelos naturais, usar roupas, símbolos, acessórios que
tenham significado para o coletivo. Ensinar a consumir o que é nosso como gesto
de carinho e fortalecimento financeiro comunitário. E neste processo de aprendizagem
de consumo nosso, é fundamental a parceria com os pretos que fazem produtos e
acessórios, por isso tenho imensa gratidão aos amigos como Hugo Chad e a Maria
Chantal que chegam junto com o Afrobetizar e cedem produtos para as atividades
com os nossos pequenos.
MBP - O que é
representatividade pra você?
VA - Representatividade é poder reconhecer alguém e ser
reconhecida/o pelo feito. Nós estamos lutando por mais ações coletivas de fortalecimento
do povo preto e neste processo, que envolve várias frentes, contamos com a ação
de pretas e pretos que visam e agem de fato em prol da coletividade. No
entanto, devemos pensar o risco da representatividade que é a responsabilidade.
Representar a “atividade” de um povo é uma tarefa árdua e tende a ser injusta.
Digo isso porque aquele que representa passa a ser visto e cobrado como herói e
herói não erra, assim no menor deslize são massacrados por aqueles mesmos que
um dia o reverenciaram. O risco da representatividade também é a sedução da
visibilidade excessiva para quem representa e, ao meu ver, o que deve estar em primeiro
plano é o movimento, a realização e não a Preta ou o Preto que realiza, pois
nossos feitos e conquistas são sempre coletivos. Por outro lado, há o risco da
acomodação e transferência de responsabilidade para quem é representado, do
tipo: “O preto tá lá fazendo por nós!”, isso gera um peso muito grande nas
costas de quem está lá representando, isso ao meu ver é antiafricano. Defendo
que nós todos estamos na luta e na luta ninguém vai combater no seu lugar. Todos
os corpos são convocados a ação, então temos que ter muito cuidado com esse discurso
de representatividade. Há um tipo de visibilidade que considero nocivo, chamo
de “afroarmadilha”, que é a representatividade da imagem, isto é, estamos reivindicando
uma presença negra nos ambientes brancos, que são regidos por leis brancas, e
enfeitando isso chamando de “ representatividade”. Ex: atores pretos na grande
mídia e candidatos pretos nos partidos políticos tradicionais. Neste momento da
minha vida, quem me representa é minha iyalorixá, meu mestre de capoeira angola
e as crianças e amigos do Afrobetizar. Pretos em ambientes regidos por pretos.
Ali, as atitudes deles são coerentes com o que penso com o que acredito e com o
que busco praticar. Ao mesmo tempo, sou acionada por eles para assumir minhas
responsabilidades nas frentes que me foram delegadas.
Conheça o projeto Afrobetizar: http://institutotear.org.br/afrobetizar-a-educacao-no-brasil/.
Conheça o projeto Afrobetizar: http://institutotear.org.br/afrobetizar-a-educacao-no-brasil/.
Olha, se eu quero ser representada essa
ResponderExcluirmulher negra, de atitude é você. Cada palavra do que você disse espelha o que penso. Você é um orgulho para a raça negra.